Igualmente deletéria para o bem-estar
espiritual da Igreja era a doutrina da salvação pelas obras, que
gradualmente permeou a teologia popular. Cristãos de origem judaica eram
particularmente sujeitos a este erro, como depreendemos de uma leitura
da carta aos gálatas. O evangelho, em vez de ser as boas novas do perdão
dos pecados pela fé em Cristo, pouco a pouco passou a ser considerado
uma nova “lei”. Outrossim, a natureza da sociedade romana, com sua longa
tradição de governo, pela lei tomava os adeptos da fé cristã
suscetíveis à tendência legalista. O orgulho natural do homem exige que
ele opere sua própria salvação para que tenha de que se vangloriar.
Fazer nossa esperança de salvação depender inteiramente da graça divina,
contraria o sentimento de estima própria arraigado em cada coração. À
base de toda concepção pagã de salvação jazem obras meritórias. Como
resultado o batismo, participação na Ceia do Senhor, e até martírio
passavam a ser interpretados como “obras”. A estes foram acrescentados,
no curso dos anos, jejuns, celibato, atos de penitência, peregrinações,
flagelação, construção de igrejas, e, eventualmente, participação nas
cruzadas contra os sarracenos, turcos e hereges. Agostinho está quase
que só entre os escritores patrísticos em sua insistência sobre a
doutrina de salvação pela graça.
No clima dominante de salvação pelas
obras, a razão para a morte de Cristo sobre a cruz, que era intuitiva
aos cristãos primitivos, tornou-se um tropeço ao pensador medieval.
Tanto assim que o desafio foi aceito pelos escolásticos, tais como
Anselmo, que escreveu uma obra Cur Deus Homo, “Por que o
Homem-Deus”, na qual ele tenta justificar a encarnação e paixão de
Cristo. Que esta verdade axiomática do cristianismo precisasse agora ter
uma explicação racional, mostra que ela havia perdido seu significado
existencial para o homem comum.
Um erro leva inevitavelmente a outro. Dia
chegaria em que a noção de que os santos praticaram maior número de
boas obras do que exigido pela “lei” obteria aceitação nos meios
teológicos. Essas obras super-rogatórias dos santos vieram a constituir
um tesouro de méritos que a Igreja podia pôr a disposição de pecadores
necessitados. Disto, à noção de indulgências, era apenas um passo.
Concedidas no começo como recompensa por serviços prestados à Igreja ou
por atos de penitência praticados, gradualmente estes serviços foram
substituídos por pagamentos monetários, e finalmente pelos abusos
escandalosos da venda de indulgências, denunciados por Wiclef e
reformadores subsequentes. De início as indulgências visavam apenas à
remissão de penas temporais impostas pelo confessor; mas acabaram sendo
interpretadas como remissão também de penas a serem sofridas no
pugatório. Na pregação de uma das cruzadas, o papa promete efetivamente:
“a retribuição dos justos e aumento de salvação eterna” em troca de
dinheiro para financiar a guerra santa.
Outro produto da concepção errônea de
salvação pelas obras, foi o sacramentalismo, isto é, a crença em que o
batismo, bem como o sacramento da eucaristia, como a Ceia do Senhor veio
a ser chamada, tinha efeito quase mágico sobre o recipiente, garantindo
sua salvação. Independentemente do caráter do ministrante, ou da fé do
recipiente, cria-se que o sacramento tinha eficácia para o fim proposto,
ex opere operato, isto é, automaticamente. A transformação do
ofício de ancião ou guia espiritual no de sacerdote acarretava a noção
de que o sacerdote devia oferecer sacrifícios a exemplo dos sacerdotes
israelitas e pagãos. Que mais natural do que interpretar a comunhão do
pão e do vinho, que originalmente comemorava “a morte do Senhor, até que
Ele venha”, como o sacrifício perpétuo e incruento da missa? Mas um
pouco de reflexão teria mostrado que a noção de um sacrifício perpétuo
chocava-se com a doutrina do Novo Testamento de que o sacrifício de
Cristo só podia ocorrer uma vez para sempre.
Inexoravelmente, todo plano de salvação
pelas obras apenas contribuía para perpetuar a servidão humana. O fardo
do legalismo, do qual Cristo veio libertar o homem, foi de novo atado às
costas do crente na Idade Média. Como regra, as massas que adoravam nas
belas catedrais da Europa jamais experimentaram plenamente a liberdade
conferida por Cristo e que faz os homens verdadeiramente livres. As
catedrais góticas, com suas espirais apontando para o céu, erigidas com o
trabalho de amor de muitas gerações, permanecem como símbolos da
aspiração do homem a algo que escapava a seu alcance. Salvação como
recompensa de obras meritórias sempre permanece além do alcance humano.